"Nue": agosto 2006

domingo, agosto 27, 2006

Falar ao outro, falar com o outro,

Por vezes dizemos as coisas tarde demais. Lembramo-nos do que poderíamos ter dito ao outro quando o perdemos ou quando estamos prestes a perdê-lo. Porque nos custa tanto dizer o que podemos dizer no tempo certo?

É importante dizer o que sentimos. Dizê-lo alto. Dizê-lo todos os dias se for necessário. Os nossos filhos…aproveitar os momentos de ternura com os nossos filhos e dizer que os amamos. Amanhã é tarde, amanhã é sempre tarde demais. Dizer ao outro que o amamos, é dar-lhe um lugar no mundo, é fazê-lo existir, sorrir, é desenvolver nele a auto-estima e a segurança.

“Papá, faz tossir a baleia –
disse a criança, confiante.”

(Henri Michaux)

Muitos pais têm dificuldades em dar afecto, dar carinho, verbalizar o que sentem. Muitos cresceram sem um abraço, sem um carinho. Construíram muralhas à sua volta e perderam a visão das coisas. Muralhas por detrás das quais escondem feridas de infância que poderiam ter sido compreendidas e reparadas.

domingo, agosto 20, 2006

Domingo, aqui estou eu,
Sentada frente ao teclado, sem saber ao certo o que escrever. Para ser franca, nos últimos dias não tenho tido muita vontade de escrever. Hoje sentei-me num café e fiz o que habitualmente faço nesse lugares…e que deve certamente incomodar meio mundo. Algo que simplesmente não consigo evitar. Olhar para aqueles pequenos detalhes nos outros, que ninguém ou quase ninguém repara. Olhar para os gestos de cada um, como comem, como olham, como se sentam, como se vestem, como se deslocam. Voyeuse? Todos somos. Todos espiamos os outros. Mas este meu “espiar”, é algo peculiar: conhecer o outro, para além daquilo que essa pessoa nos diz, é o que a linguagem corporal da mesma nos transmite de forma subtil. Já pensei imensas vezes em ter permanentemente comigo uma máquina fotográfica, penso que tiraria uma quantidade imensurável de fotografias para reter esses momentos que observo. E lá fiquei eu, perdida nas horas, perdida no tempo, a navegar por essas imagens, presa momentaneamente na vida dos outros, roubando episódios de vida de cada um.

sábado, agosto 19, 2006

Permissividade ou Autoridade?

Muitos pais sentem-se à deriva, sem saber qual é a melhor atitude a tomar na educação dos filhos. Oscilam muitas vezes entre uma postura autoritária, onde impõem rigorosamente a sua vontade aos filhos ou então uma postura demasiado permissiva, onde os filhos estão livres de escolher o que querem.

Eu penso que esta não é a questão mais importante ou então a pergunta está mal formulada.

É necessário sobretudo, que seja qual for a posição que tomemos, exista até ao fim, coerência com a opção tomada, sendo esta uma real convicção. Muitas vezes, o oscilar entre posições provoca uma grande instabilidade emocional nas crianças.

Volto novamente aqui a abordar a posição delicada que ocupamos, nós psicólogos. Existem histórias que ouvimos, que mesmo depois de tantas outras ouvidas, nos deixam perplexos. Normalmente são histórias onde predomina a violência. E esta semana, ouvi uma história que me revoltou. Mas tenho que manter a calma, a segurança que a criança precisa sentir. Uma menina de 10 anos de idade, que para além de nunca ter tido um lar, vive com pessoas que a agridem permanentemente. O seu corpo pequeno, frágil, esta repleto de marcas de fios eléctricos…e outro tipo de objectos. E esta menina ainda é capaz de sorrir e de encontrar uma desculpa para esse tipo de comportamento. Uma desculpa onde ela não é vítima mas se sente responsável por merecer tal comportamento.

Como conseguir ajudá-la? Fazer com que ela sofra menos? Fazer alguma coisa num País onde pouco podemos contar com as instâncias judiciais, jurídicas e sociais, cujo papel é de proteger essas crianças…

segunda-feira, agosto 14, 2006

“Se há algo que desejamos mudar na criança, deveríamos perguntar-nos se não será algo que seria melhor mudarmos em nós próprios.” (Jung)

A criança “televisiva”

Os pais parecem não estar a aperceber-se deste fenómeno que está a tomar proporções alarmantes: o consumo televisivo diário e sem medida, um verdadeiro cocktail de imagens! Ai temos as nossas crianças frente ao televisor durante horas, expostas a imagens que muito frequentemente não conseguem compreender e elaborar. Elas não vêem apenas desenhos animados (mesmo esses tornaram-se cada vez mais violentos), elas consomem muitas vezes qualquer tipo de imagens. Desde cedo já sabem manipular os comandos de televisão e escolher aquilo que querem ver.

É muito comum, para quem observa crianças que estiveram expostas a imagens violentas, vê-las reproduzir aquilo que viram: bater nos colegas ou amigos, partir brinquedos, tirar braços, pernas, olhos dos bonecos.

Mesmo durante as refeições em família…a televisão está ligada, a família não fala! Os pais queixam-se de falta de tempo para interagirem com os seus filhos mas são capazes de deixarem a televisão ligada durante as refeições e consumirem calados, ao mesmo tempo que os seus filhos, as imagens que vão passando.

Por falta de tempo, por falta de paciência ou por desconhecimento e até mesmo por um certo comodismo, os pais deixam as suas crianças durante horas, consumir imagens televisivas. Para além da televisão, existe também o computador…os jogos de computador, a internet, etc. Esta última, a internet, é o veículo para um mundo repleto de perigos. Tenho alguns exemplos, de crianças que precocemente tem aceso a imagens pornográficas através da internet…qual é a mensagem que elas recebem?

Para além desses aspectos, muitas crianças que observo em consulta, queixam-se de dores de cabeça constantes. Depois de despistar qualquer problema a nível neurológico ou oftalmológico, recomendo que as mães diminuam as horas em que as crianças vêem televisão durante o dia. E infalivelmente, as dores de cabeça desaparecem.

Eliminar completamente o consumo de televisão? Parece impossível embora prudente. O que eu proponho, pelo menos, é que os pais estejam atentos. Não deixar durante horas as crianças frente à televisão, seleccionar o tipo de programas que elas vêem e estarem presentes durante os programas que elas assistem. Estarem presentes para explicarem o que a criança está a ver. Ajudar a criança a elaborar e perceber o que está a ver. Isto é, penso eu, o mais importante!

domingo, agosto 06, 2006

O diálogo

Antes mesmo de abraçar esta carreira profissional, eu já defendia a ideia de que deve existir diálogo permanente num relacionamento. Mesmo com as crianças, o diálogo com elas começa no primeiro instante em que elas existem, bem dentro do ventre da mãe. Como eu dizia inicialmente, quando comecei a criar este blog, acredito que a “palavra tem uma força incalculável”. Falar em voz alta, cantar quando grávidas. É assim que inscrevemos esta vida que está para nascer, no mundo da linguagem, é assim que o levamos a existir, a perpetuar-se.
Muitas mães não falam com os seus filhos, não conversam com eles, não respondem às perguntas que eles fazem. Desconhecimento? Medo? É comum ouvir pais em consulta dizerem: “mas é que eu pensava que ele era muito pequenino para explicar-lhe essas coisas...”.
Falar com as crianças, nomear os objectos, falar sobre eles, explicar a lógica das coisas, sempre adaptando o discurso à idade delas. Os pais têm aqui um papel fundamental.
Uma criança sem respostas é uma criança mutilada.

sábado, agosto 05, 2006

Não, o meu trabalho não é “do outro lado da mesa”. “Ensinaram-nos”…mas o contacto com aqueles que nos procuram, ensinou-me que temos que estar mais próximos e que por vezes tocar no outro, é também, levá-lo a sentir-se vivo. Foram apenas questões colocadas, quem sabe, exactamente para provocar este debate.

Eis este caso que tive recentemente:

L. tem 14 anos, foi internado de urgência na psiquiatria em estado catatónico. Não tinha reacção nenhuma, não se mexia, mantinha-se na mesma posição durante horas. Os pais explicaram que este rapaz era muito aplicado nos estudos, alegre, tinha amigos, estava sempre disposto, participava prontamente nas tarefas caseiras e convívios familiares. Em um ano, o comportamento dele foi-se degradando. Inicialmente começou por chorar dias sem parar, deixou de ir à escola, deixou de querer alimentar-se, etc. até chegar ao estado actual.
Chamaram-me para ver este rapaz, pois o nosso departamento trabalha com crianças e adolescentes. Achei que ali não poderia fazer o meu trabalho, numa sala com vários doentes, despida de cor, luz, despida de vida. Recomendei que o trouxessem duas vezes por semana ao departamento onde trabalho.
Falei com os pais do rapaz para obter todo o historial do rapaz e historial familiar, na busca de algo que pudesse ter levado L. a desistir de tudo.
Na primeira sessão, tiveram que arrastar L. até à minha sala. Sentado, permaneceu uma hora sem reagir a estímulo nenhum. Durante as sessões seguintes, já não foram preciso obrigá-lo a entrar na sala, ele andou e sentou-se sozinho. O meu trabalho centrou-se em conversas com ele, mesmo sem resposta, agachava-me de modo a situar-me abaixo do olhar dele (ele permanecia encurvado a olhar para as mãos, inertes), tocava-lhe nas mãos (que no inicio ele afastava), fazia puzzles por cima das pernas dele, desenhos, mostrava imagens, contava histórias…L. começou a reagir. A expressão do rosto mudou, já tentava levantar a cabeça, já não afastava as minhas mãos das dele, já não virava o rosto quando eu mostrava estímulos diversos. Em conversa com o pai dele soube que L. adora futebol, quer ser futebolista, adora desenhar…saber quais são os campos de interesse do rapaz iria ajudar-me a conseguir encontrar uma ponte para chegar a ele, para entrar no mundo dele, para entrar nesta fortaleza que ele construiu, para se proteger de algo...
Comecei a falar-lhe de futebol, contei-lhe o que tinha acontecido nos últimos jogos do Mundial e nesse dia, L. tentou falar com imensa dificuldade. Respondeu às minhas perguntas com um acenar do rosto e fez-me um desenho, depois de lhe te pedido que segurasse o lápis e lhe tivesse pedido para fazer um desenho numa folha. Hoje, L. vem ao centro, já fala, embora com dificuldades, faz puzzles sozinho, desenha, escreve. Em casa já sai, interage com os amigos e diz que quer voltar a estudar.

Mas a minha pergunta permanece: o que levou este rapaz a desistir da vida? Preciso obter esta resposta para tentar ajudá-lo. Todo o processo de degradação foi uma rejeição completa do seu próprio corpo. A minha primeira hipótese gira à volta da problemática da sexualidade. Pus a hipótese deste rapaz ter vivido uma experiência homossexual, ou de ter sido violado ou abusado sexualmente. Mas são apenas hipóteses. Tenho ainda um longo trabalho pela frente e sinto que consegui dar-lhe a mão, mão que ele agarrou, para assim se agarrar à vida e reencontrar o rapaz que ficou lá atrás, já faz hoje um ano.

sexta-feira, agosto 04, 2006

Quando alguém chora à nossa frente, e nos diz que não quer viver, que a vida deixou de ter sentido, nós, psicólogos, estamos do outro lado da mesa. Insensíveis? Como interpreta o outro a nossa postura? Tem que existir uma distância, física, emocional. Esta distância torna-se difícil em certas situações.

O nosso lugar:

O lugar que nós psicólogos ocupamos. Como todos os outros, somos humanos, temos uma história, uma vida. E todos os dias ouvimos histórias, que podem lembrar as nossas. Todos os dias nos deparamos com feridas que lembram as nossas. Como gerir o cenário terapêutico, sem que as histórias dos outros se misturem às nossas? Ensinaram-nos a ser neutros. « Neutralité bienveillante » até que ponto?

Que mãe corta o dedo do próprio filho, para que este não volte a pô-lo na boca?
Foi a história que vivi hoje. Um menino de 8 anos, com o dedo todo embrulhado num penso. Amedrontado, acabou por contar o que a mãe lhe tinha feito. Não existe limite para a violência. Esta mãe não cortou apenas um dedo ao seu filho, esta mãe enclausurou esta criança num mundo de medo, de silêncio e de violência. A linguagem usada é uma linguagem de destruição e humilhação. Não é uma linguagem de amor, que permitirá a esta criança crescer e acreditar em si própria, confiar nas suas capacidades, avançar, tornar-se autónoma. Esta é uma linguagem onde predomina a lei da violência, onde a palavra não existe, onde a compreensão não tem lugar e onde o afecto é inexistente.

E porque é que esta criança põe o dedo na boca? Com 8 anos este tipo de comportamento é algo regressivo, muitas vezes, é sinal de insegurança, sinal de medo, de falta de afecto…de falta de colo.

quarta-feira, agosto 02, 2006

Hoje começo com uma frase:

“É mais fácil ao psiquismo humano inventar foguetões com destino à lua, do que aceitar uma separação.”

Maurice Berger

Muitas crianças estão em situação penível devido a uma separação por parte dos pais…uma separação que poderá estar ainda em curso ou então que já se tornou definitiva. Estes pais que estão em ruptura, e portanto em desequilíbrio, deixam os seus filhos à deriva, que se debatem sozinhas, sem perceber o que está a acontecer. Por várias razões, é frequente os pais pensarem que é melhor evitar abordar esta temática com os filhos. Muitas crianças culpam-se pela separação dos pais. Não se deve subestimar aquilo que as crianças percebem, elas sofrem o drama que está a acontecer e assistem ao desmoronar da união entre duas pessoas que elas amam, sentem as agressões que elas se fazem mutuamente e perdem a segurança…perdem o chão. Em consulta, faço o acompanhamento de crianças que estão a viver este tipo de situações e, as manifestações da ansiedade face ao problema que estão a viver, podem ser físicas como emocionais. Fisicamente, por exemplo, as crianças podem perder o apetite, apresentar problemas relativamente à qualidade do sono (pesadelos, dificuldade para adormecer, terrores nocturnos, enurese nocturna, etc.), etc., e emocionalmente, as crianças podem tornar-se menos receptivas, tristes, chorar com facilidade, preferir o isolamento, etc.
É necessário que as crianças possam exprimir o sofrimento e o facto dos pais permitirem que elas falem sobre a situação, permite-lhes atravessar com menos dificuldade o sofrimento e a separação dos pais. Por mais pequenas que elas sejam, falem com elas, dêem-lhes uma razão, não deixem as crianças imaginarem cenários possíveis e culpabilizarem-se muitas vezes por esta ruptura. Por mais terrível que pareça a situação, a criança precisa de sentir que independentemente do que poderá vir a acontecer, ela é amada pelos dois e será sempre amada. Precisa sentir que não vai perder esse amor e que apesar da desunião entre os pais, existirá união inquebrável, aquela entre ela e os pais.

terça-feira, agosto 01, 2006

“Que estranha a nossa verdade!
Às vezes, partida a meio,
Minha ilusória unidade
Pensando, sinto, pensei-o

Mas quando penso que o penso
Estou-o pensando também
Na vertigem, não me venço
E recuo e vou além

Daquilo para que há defesa
Feliz quem pode parar
Onde a certeza é certeza
E pensar é só pensar!”

Reinaldo Ferreira