Não, o meu trabalho não é “do outro lado da mesa”. “Ensinaram-nos”…mas o contacto com aqueles que nos procuram, ensinou-me que temos que estar mais próximos e que por vezes tocar no outro, é também, levá-lo a sentir-se vivo. Foram apenas questões colocadas, quem sabe, exactamente para provocar este debate.
Eis este caso que tive recentemente:
L. tem 14 anos, foi internado de urgência na psiquiatria em estado catatónico. Não tinha reacção nenhuma, não se mexia, mantinha-se na mesma posição durante horas. Os pais explicaram que este rapaz era muito aplicado nos estudos, alegre, tinha amigos, estava sempre disposto, participava prontamente nas tarefas caseiras e convívios familiares. Em um ano, o comportamento dele foi-se degradando. Inicialmente começou por chorar dias sem parar, deixou de ir à escola, deixou de querer alimentar-se, etc. até chegar ao estado actual.
Chamaram-me para ver este rapaz, pois o nosso departamento trabalha com crianças e adolescentes. Achei que ali não poderia fazer o meu trabalho, numa sala com vários doentes, despida de cor, luz, despida de vida. Recomendei que o trouxessem duas vezes por semana ao departamento onde trabalho.
Falei com os pais do rapaz para obter todo o historial do rapaz e historial familiar, na busca de algo que pudesse ter levado L. a desistir de tudo.
Na primeira sessão, tiveram que arrastar L. até à minha sala. Sentado, permaneceu uma hora sem reagir a estímulo nenhum. Durante as sessões seguintes, já não foram preciso obrigá-lo a entrar na sala, ele andou e sentou-se sozinho. O meu trabalho centrou-se em conversas com ele, mesmo sem resposta, agachava-me de modo a situar-me abaixo do olhar dele (ele permanecia encurvado a olhar para as mãos, inertes), tocava-lhe nas mãos (que no inicio ele afastava), fazia puzzles por cima das pernas dele, desenhos, mostrava imagens, contava histórias…L. começou a reagir. A expressão do rosto mudou, já tentava levantar a cabeça, já não afastava as minhas mãos das dele, já não virava o rosto quando eu mostrava estímulos diversos. Em conversa com o pai dele soube que L. adora futebol, quer ser futebolista, adora desenhar…saber quais são os campos de interesse do rapaz iria ajudar-me a conseguir encontrar uma ponte para chegar a ele, para entrar no mundo dele, para entrar nesta fortaleza que ele construiu, para se proteger de algo...
Comecei a falar-lhe de futebol, contei-lhe o que tinha acontecido nos últimos jogos do Mundial e nesse dia, L. tentou falar com imensa dificuldade. Respondeu às minhas perguntas com um acenar do rosto e fez-me um desenho, depois de lhe te pedido que segurasse o lápis e lhe tivesse pedido para fazer um desenho numa folha. Hoje, L. vem ao centro, já fala, embora com dificuldades, faz puzzles sozinho, desenha, escreve. Em casa já sai, interage com os amigos e diz que quer voltar a estudar.
Mas a minha pergunta permanece: o que levou este rapaz a desistir da vida? Preciso obter esta resposta para tentar ajudá-lo. Todo o processo de degradação foi uma rejeição completa do seu próprio corpo. A minha primeira hipótese gira à volta da problemática da sexualidade. Pus a hipótese deste rapaz ter vivido uma experiência homossexual, ou de ter sido violado ou abusado sexualmente. Mas são apenas hipóteses. Tenho ainda um longo trabalho pela frente e sinto que consegui dar-lhe a mão, mão que ele agarrou, para assim se agarrar à vida e reencontrar o rapaz que ficou lá atrás, já faz hoje um ano.