"Nue": setembro 2006

quarta-feira, setembro 20, 2006

Hoje vi um menino de 2 anos e meio de idade. Muito doce, terno. Os pais esperavam na sala ao lado, muito afastados um do outro, cada um num canto do sofá. Não se falam há meses. E se porventura têm algo para comunicar um ao outro, fazem-no aos gritos ou então agredindo-se mutuamente. Este menino assiste diariamente a este tipo de cenas. O comportamento dele alterou-se: dificuldades para dormir, pesadelos, falta de apetite, choro frequente, gaguez, etc.

Em consulta, sentaram-se de costas viradas um para o outro…e durante uma hora em que estiveram comigo, mantiveram-se calados a maior parte do tempo e quando falaram, foi somente para se fazerem acusações.

Estes dois seres humanos tiveram uma história juntos, um dia gostaram um do outro e decidiram construir uma família. Tiveram um filho, partilharam momentos lindos com esta criança e, chegaram a este ponto, ao limiar…onde não existe mais diálogo…e onde a única ponte que ainda os une ou parece unir, é este filho que vai dos braços de um para o outro sem perceber o que acontece. E este menino deixou de ver sorrisos entre os pais, deixou de ver carinho entre eles. Este menino deixou de ter estabilidade, segurança. E ninguém lhe explica o que acontece e ele não percebe porque razão os pais se afastaram um do outro…
E estes pais esqueceram-se desta criança, centrados nos seus conflitos e desavenças.

Muitas crianças se responsabilizam muitas vezes pela separação dos pais, pelo conflito entre os pais. Faz-me lembrar uma vez uma menina em consulta, que me disse que se se tivesse portado melhor, os pais ainda estariam juntos. É tão importante explicar às crianças o que se passa à volta delas…dar significado ao que acontece, seja bom ou mau.

Sempre me afligiu a ruptura. O que fica depois de uma ruptura? Muitas vezes o silêncio. Como conseguem coexistir no silêncio duas pessoas que num momento das suas vidas partilharam momentos de tão grande intimidade. Silêncio…depois de tanta cumplicidade. Passar um pelo outro como se dois estranhos se tivessem tornado um para o outro. E quando de uma união, nascem filhos que têm que viver nesse silêncio? Como encontram eles palavras para construírem a sua história?

domingo, setembro 10, 2006

Como passo as minhas tardes de sábado?
A trabalhar num centro de atendimento para jovens adolescentes seropositivos.
Aos sábados faço dinâmicas de grupo. Forma-se uma roda e cada um desses jovens fala de si, partilha com os outros experiências vividas relativas ao seu estado de saúde. São jovens com idades compreendidas entre os 17 e os 26 anos de idade. É um grupo que consegue manter-se positivo na sua luta contra a doença e formar uma rede de suporte para os jovens recém-chegados. Apesar de ter alguma experiência com esse tipo de grupos e problemática, devo confessar que é sempre destrutivo ouvir os relatos desses jovens. Mas ao mesmo tempo eles dão-nos uma lição de vida, de luta permanente…de luta de vida sobre a morte.

“Dois amantes felizes não têm fim nem morte,
nascem e morrem tanta vez enquanto vivem,
são eternos como é a natureza.”

Hoje sentei-me num pequeno café, virado para o mar…sentei-me a ler um poeta que adoro: Pablo Neruda. Engraçado que goste tanto de ler este poeta e ao mesmo tempo o tivesse “esquecido” entre outros livros já lidos vezes sem conta.

“Este amor tem duas vidas para amar-te.
Por isso amo-te quando não te amo
E por isso amo-te quando te amo.”

quinta-feira, setembro 07, 2006

Tenho a impressão, desde que trabalho nesta área, que todos aqueles que trabalham nos meios hospitalares, médicos, enfermeiros, psicólogos, etc., vivem num mundo à parte. Nesse mundo vemos e ouvimos horrores humanos. Depois existe uma linha contínua que nos leva desse mundo ao outro, o mundo dos nossos amigos, família, etc. e muitas vezes quem compõe o mundo de fora vive numa aparente inconsciência do que se passa no nosso dia-a-dia de trabalho. Inconsciência forçada? Ignorar o que se passa seria uma forma de sofrer menos? Sentir-se menos responsável?

Tenho amigos que me dizem que deveria escrever sobre coisas mais bonitas. Mais coloridas…e eu pergunto-me…escrever sobre coisas mais bonitas? O que existe de mais bonito, do que sentir que estou a tentar reconstruir vidas? Sentir que estou a caminhar com outros seres humanos, que estão em sofrimento e que ao estar com eles, estou também a abri-lhes uma janela para a vida? E que neste processo, torno a minha vida muito mais rica…

Durante a semana, vi uma menina de 8 anos de idade. Veio acompanhada pelo pai à consulta. Filha de pais separados. Há dois anos um homem (um primo) entrou pela casa onde a menina estava apenas com uma das irmãs e esfaqueou-a. Foi submetida a várias intervenções cirúrgicas e hoje vive apavorada, sempre cheia de medo, não consegue dormir durante a noite, acorda em sobressalto, tem pesadelos, falta de apetite, o rendimento escolar diminuiu, para além de outras dificuldades.

Uma outra ainda, mais velha, de 16 anos, foi apanhada na rua por 4 homens quando voltava da escola para casa, e levada para um local abandonado, onde foi espancada e violada por todos eles. Ora, esta jovem, para além da violência pela qual passou e de tudo o que perdeu, corre o risco de ter sido contaminada pelo HIV.

Como devolver o sorriso a estas duas meninas?